segunda-feira, 23 de julho de 2007

A Arte de Takashi Murakami


Takashi Murakami é um dos mais singulares artistas plásticos dos últimos anos.
A temática da sua obra gira em torno da apropriação - e da eventual subversão -, de uma iconografia popular presente nos "mangas" (banda desenhada japonesa); tranferindo-a, posteriormente, para as galerias, de modo a inseri-la numa linguagem relativa ao domínio das artes plásticas.
Se pensarmos no advento da Pop e em todos os desenvolvimentos que a mesma alavancou na História da Arte do Séc. XX, podemos concluir de que tal não se trata, propriamente, de uma problemática nova e inexplorada.
No entanto, numa sociedade em que as barreiras entre a low e a high Art (conceitos desenvolvidos pela comunidade crítica, para se referirem a variadas intervenções para-artísticas no tecido urbano e à própria BD) se tornam algo difusas e subjectivas, propostas como a deste artista japonês adquirem cada vez mais pertinência.



Assim como "writers" e "graffiti artists" da estirpe de Bansky e semelhantes, povoam as ruas com stencils e graffitis problematizados e orginais, dotados de uma certa índole interventiva da arte contemporânea (ainda que de forma algo parcial); Murakami tenta esbater as barreiras entre entres dois universos, no âmbito das galerias e museus e intervindo, igualmente, no espaço público.

Um artista a descobrir, para um melhor entendimento das linhas de força que regem as mais recentes propostas estéticas.

sábado, 21 de julho de 2007

A Utopia Ibérica de Saramago

Nos últimos tempos, um pouco por toda a "blogosfera", tem sido algo difícil esquivarmo-nos das várias referências às declarações polémicas de Saramago, sobre a "união" dos dois países que componhem a Peninsúla Ibérica.
Não tendo, propriamente, qualquer tipo de pretensão em ter algo a acrescentar a esta temática e a tudo aquilo que já foi dito sobre os delírios utópicos do referido senhor; achei que me deveria pronunciar, igualmente, sobre o assunto em questão.

Convém esclarecer, antes de mais, que não nutro particular apreço por Saramago, enquanto pessoa. Dado que sempre me pareceu que o próprio manifestava simpatias políticas por determinados regimes algo questionáveis de um ponto de vista ético, e que as proporções titânicas do seu mal disfarçado ego, ultrapassavam, em muito, o seu real valor enquanto escritor.

Não quero com isto dizer, que estas circunstâncias tenham alguma influência na minha posição em relação às suas declarações!
Parece-me apenas, que alguém que foi alvo de tantas honrarias e distinções de pendor intelectual, deveria manifestar algum pudor e temperança, aquando das mesmas.
Não sendo, propriamente, uma caracterísitca de uma elite iluminada, o bom senso é uma qualidade indispensável a uma boa interacção social, e a sua falta é absolutamente imperdoável, em alguém com a exposição e o ascendente intelectual (merecido ou não) de José Saramago!
Posto isto, o facto de alguém estar disposto a vender a sua identidade cultural e direito à soberania, a troco de compensações económicas dúbias e de uma certa desresponsabilizção pelas rédeas do seu destino e dos seus semelhantes, é indigno de viver na civitas (não admira que te tenhas baldado para um cú de judas tão remoto, ó Zé).

Uma união pressupõe uma colaboração.
Um esforço comum para atingir um objectivo benéfico a ambas as partes, mantendo as mesmas uma plataforma de respeito pela dignidade e direito à auto-determinação da outra. Não é relativa a uma apropriação (mais ou menos) velada, com vista a satisfazer os caprichos colonialistas de certos corsários.
O facto de ter uma destacada figura da "comunidade pensadora" nacional (sim, porque Saramago é português, ainda que prefira não ser lembrado do facto) a renegar de forma tão categórica a sua identidade, é para mim uma bofetada sem luva!
Uma profunda humilhação, que tem o potencial para fazer mais pela deterioração da nossa auto-imagem enquanto povo e cultura, do que qualquer estatística da UE, ou desaire futebolísitco da selecção...

Cada vez tenho mais motivos para dar razão a Vasco Pulido Valente, quando este põe em questão a qualidade da consciência crítica e política, do nosso (?) Nobel da Literatura...

quarta-feira, 18 de julho de 2007

A Teia De Cronenberg

Finalmente tenho tempo para deixar um novo post no blog, finda a "silly season" dos exames!

Peço desculpa, desde já, por esta minha ausência prolongada, e espero que que a mesma não tenha desencorajado as três ou quatro almas estóicas da vizinhança, a deixar de frequentá-lo com alguma regularidade...


"Spider" de David Cronenberg

“Spider” de 2003, é uma adaptação de David Cronenberg da obra homónima de Patrick MacGrath.
O filme conta a história de um indivíduo, Dennis Cleg, que padece de uma patologia mental grave, e que, ao ser liberto da instituição psiquiátrica onde viveu largos anos da sua vida, é mandado para uma “halfway house” no seu antigo bairro.

No decorrer do filme, somos confrontados com as recordações - ou serão ilusões? - de Cleg (que as revive na terceira pessoa), reexperienciando assim, o homicídio da sua mãe às mãos de um pai brutal e a substituição desta por uma prostituta.
Importante para uma boa compreensão das motivações e idiossincrasias de Cleg (Spider), é a relação edipiana que este manteve com a sua mãe, e que determinou o seu relacionamento posterior com o sexo feminino; particularmente com Mrs. Wilkinson (brilhantemente interpretada por Miranda Richardson). A supervisora déspota do asilo para o qual Spider é mandado.

Convém dizer que estamos perante um filme atípico na carreira de David Cronenberg.
Atípico, porque o realizador que se consagrou como criador do cinema de “terror venéreo”, tendo no corpo humano e numa experiência eminentemente neurótica e grotescamente estilizada da sexualidade, a temática por excelência da sua obra (são exemplos disso filmes como, “Naked Lunch,” “The Brood,” ou ”Videodrome“, entre outros); opta por fazer uma abordagem do livro de Patrick McGrath, que se poderia ter como sendo mais contemplativa e sobretudo, desapaixonada da personagem principal.

De facto, quando analisamos Dennis Cleg, torna-se logo à partida notória, uma sensação de que estamos a desempenhar um papel acrítico de “voyeur“, no inferno pessoal de uma personagem atormentada pelos seus fantasmas.
Esta sensação, é-nos feita sentir inteligentemente pelo realizador, da forma como filma Cleg: Distanciada e com uma ligeira elevação, remetendo-o contra o cenário e como que o confinando a uma realidade feia e inóspita.
Também contribui para esta particularidade, a ausência de um factor que poderia tornar o enredo algo frágil, não fosse o realizador verdadeiramente talentoso:

- O protagonista principal não sofre qualquer mudança!

Ao contrário de Max Renn de “Videodrome” ou Seth Brundle de “The Fly”, ambos personagens dentro de uma certa normalidade, que são expostos a circunstâncias extraordinárias, influenciando assim profundamente o seu arco dramático, Dennis Cleg já passou pelas vicissitudes que seriam de esperar, dentro do conflito do filme. O mesmo não é mais, por isso, como que um relembrar deste, das situações que influenciaram a sua condição presente, à espera de uma conclusão que, infelizmente, nunca chegará para si.

Tecnicamente, “Spider” não é o melhor filme de Cronenberg, embora conte com alguns pontos fortes; nomeadamente interpretações soberbas por parte de Ralph Fiennes e Miranda Richardson (esta última com aquele que será indubitavelmente o papel da sua carreira), décors muito bem pensados, eficazes em remeter o espectador para a atmosfera lúgubre e densa do mundo operário e limítrofe da East End de Londres, e uma planificação cuidada e inteligente das sequências.

Mas vale sobretudo, por uma incursão problematizada pelos meandros da psique humana e das motivações subconscientes da nossa natureza, tema tão querido aos autores do cinema fantástico.

Nesse prisma, o real valor deste filme, residerá não tanto na excelência de um ponto de vista da técnica cinematogáfica, mas no esforço conceptual empregue por Cronenberg, no sentido de conferir a Spider uma visão original em termos da narrativa, fugindo assim de certos lugares comuns a este tipo de cinema.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Banda Sonora Para Uma Viagem De Verão


Magnetic Fields - "Take Ecstasy With Me"

Cat Power - "He was a friend of mine"

Calexico - "Crystal Frontier"



Vincent Gallo - "A Wet Cleaner"

Chris Isaak - "Wicked Game"

Boards of Canada - "Dayvan Cowboy"



Calexico - "Ritual road map"

America - "Horse with no name"

Seu Jorge - "Life In Mars"



Angelo Badalamenti - "Twin Peaks theme"

Pearl Jam - "Of the girl"

The Kinks - "See my friends"



Calexico - "Over your shoulder"

Aimee Mann - "You do"

M. Ward - "Let´s Dance"



Neil Young - "Heart of Gold"

Cocteau Twins - "Song to the Siren"

Smog - "Vessel in vain"





Um excelente verão...

sábado, 30 de junho de 2007

Cinema Maldito


Nunca houve, provavelmente, outra forma de arte com o poder de infuenciar as massas de uma forma tão determinante, como o cinema.
Poder-se-ia apontar como razões para tal, o facto de ser, de todas as artes, a única que beneficia de uma verdadeira e sofisticada indústria na sua produção e distribuição (algo que remonta aos primórdios do star system de Thalberg e da sua estrutura integrada); ou por razões que se prendem com a facilidade da linguagem cinematográfica em si, estruturalmente simples (com óbvias excepções) em comparação com as artes plásticas, a música contemporânea, ou até mesmo com grande parte da literatura.
No século passado, vários cineastas, cientes deste facto, não hesitaram em aproveitar esta qualidade "formadora" de consciências e sentimentos, ao serviço de fins mais próximos da propaganda política, do que de quaisquer compromissos estéticos ou artísticos.
Vertov, Eisenstein e Riefenstahl são alguns destes exemplos. Realizadores profundamente comprometidos com os seus regimes (Vertov e Eisenstein com o comunismo na Rússia, Riefenstahl com o nazismo na Alemanha), que preteriam qualquer noção de arte pela arte, em prol das qualidades intrínsecas do cinema enquanto ferramenta de influência política e ideológica.

Por outro lado houve, igualmente, ao longo da (ainda) curta história desta arte, cineastas que se aproveitaram da proximidade do cinema com o público, para deliberadamente criarem uma cisão com o "bom gosto" vigente e confrontar o espectador com interrogações existenciais profundas, ou simplesmente chocar o seu sistema de valores.
Poderiamos nesta categoria nomear cineastas como Buñuel (Un Chien Andalou , L´Âge d´Or, Viridiana), Kubrick (A Clockwork Orange), Pasolini (Teorema, Salò o le 120 giornate di Sodoma) Oshima (In The Realm Of Senses), Cronenberg (Crash, The Brood, Videodrome) ou ainda mais recentemente Takashi Miike com os ultra-violentos Ichi The Killer, Audition ou Imprint.

Deste último lote de cineastas e filmes, poderiamos dizer que partilham de uma certa aura de "maldição" e fascínio que transcende, muitas vezes, o próprio espaço físico da sala de cinema, criando verdadeiras lendas em torno de si.
Pois é precisamente deste tipo de fitas, entre outras, que trata o ciclo "filmes infames", a decorrer durante o mês de Julho na Cinemateca. Obras, que, por uma ou outra razão, criaram uma profunda controvérsia - em muitos casos ainda bem viva, décadas depois - que contribuiram para destruir a carreira dos seus autores, ou em outros casos, para projectar e consolidar a mesma.

Poderemos ver, neste ciclo, os seguintes filmes:


Je Vous Salue Marie - De Jean Luc Godard, 1984

Triumph Des Willens
- De Leni Riefenstahl, 1934



The Outlaw
- De Howard Huges e Howard Hawkes, 1934

At Long Last Love
- De Peter Bogdanovich, 1975

Peeping Tom
- De Michael Powell, 1960

Branca De Neve
- De João César Monteiro, 2000

The Birth Of A Nation
- De D.W. Griffith, 1915



Viridiana
- De Luís Buñuel, 1961

Jud Suss
- De Veit Harlan, 1940

Extase
- De Gustav Machaty, 1932

Salò O Le 120 Giornate Di Sodoma
- De Pier Paolo Pasolini, 1975



Un Chien Andalo
u - De Luís Buñuel e Salvador Dali, 1929

Zéro De Conduite
- De Jean Vigo, 1933

Un Chant D´Amour
- De Jean Genet, 1950



Pink Narcissus
- De Jim Bidgood, 1971

White Dog
- De Samuel Fuller, 1982


Mais informações no site da
Cinemateca Portuguesa




quinta-feira, 28 de junho de 2007

Duas Músicas

São dois temas que descobri há pouco tempo, e que me têm acompanhado religiosamente nestes últimos dias.

Um, de uma banda que já anda por aí há alguns anitos e à qual (mea culpa) nunca dei grande atenção. O outro, autoria duma menina de feições exóticas, estreante nestas lides.
Por vezes há acasos felizes, em que descobrimos pérolas como estas.

Enjoy!

Bat For Lashes - "What´s A Girl To Do"




The Divine Comedy - "A Lady Of A Certain Age"

terça-feira, 26 de junho de 2007

The Shining

The Shining, uma adaptação de Stanley Kubrick a partir da obra homónima de Stephen King, é um filme que retrata a problemática das relações humanas numa situação limite, sob a “capa” de um filme de terror, sumamente bem realizado.
A história gira à volta de Jack Torrance, um escritor visivelmente “borderline", que no decorrer de um bloqueio criativo, decide aceitar um alienante trabalho como vigilante de um remoto hotel, na esperança de poder concluir o seu projecto literário; e da sua família: Danny, seu filho, um rapaz com estranhos poderes de clarividência, e Wendy, a sua submissa e fragilizada esposa, que funciona como elemento aglutinador de uma unidade familiar visivelmente precária. O “gancho” do filme, e primeiro sinal denunciador do isolamento e degradação mental - as principais temáticas exploradas na obra - está patente logo nos primeiros minutos, quando o dono do hotel menciona a Jack um incidente ocorrido anos antes, em que um indivíduo que desempenhava as mesmas funções deste último, assassinou e mutilou a sua mulher e filhas, suicidando-se de seguida.
Está assim lançada a premissa do filme, cujas principais linhas de força têm como signo o elemento do hotel, aparentemente amaldiçoado, que mais do que uma localidade onde decorre a acção, é um elemento vivo e participante activo na progressão dramática do enredo (são exemplos disso a visão de Danny, em que uma torrente de sangue jorra do elevador, ou a advertência do cozinheiro Dick Halloran, que deixa implicito no seu diálogo com o primeiro, uma advertência para que este não entre, em circunstância alguma, no quarto 237).
Poder-se-á dizer, deste modo, que a ameaça sobrenatural representada pelo hotel, é um sinal claro do perigo que constitui a reclusão naquele espaço labiríntico, à harmonia da vida familiar, e ao despoletar do desejo latentes de Jack.

Embora todos os personagens tenham um papel de relevo no filme, o mesmo gira maioritariamente em torno de Jack e da sua progressiva deterioração mental. Convém então demorarmo-nos a retratar pormenorizadamente os seus dilemas emocionais e idiossincrasias. Sendo que é por intermédio do ascendente do hotel (que funciona como elemento destabilizador da sua sanidade) que intuimos as mudanças progressivas no seu arco da personagem.
Jack Torrance é representado no filme de uma forma muito menos lisonjeadora do que no livro de Stephen King. Enquanto na obra literária a sua personagem encarna o papel do herói trágico; vergado pelas vicissitudes de uma vida ligada ao alcoolismo e tentando rumar contra a maré, de modo a manter a integridade da sua vida familiar (uma temática que é, aliás, muito querida a King), o seu alter-ego cinemático é alguém muito mais vicioso e propenso à actos de violência.
De facto o protagonista de Shining, grandiosamente interpretado por Jack Nicholson, é alguém visivelmente perturbado e no limite de uma quebra psicótica com a realidade.
Seria possível dizer, inclusivamente, que Jack Torrance funciona no enredo como uma espécie de antagonista iconoclasta. Decidido a sacrificar os símbolos da pureza e da harmonia familiar, representados pela mulher, Wendy, mas muito particularmente por Danny, em prol de fins egoístas e próximos das pulsões mais animalescas da natureza humana. Jack, tal como o Deus Grego Cronos, que devora os própria prole, põe em prática o seu desejo latente de assassinar o seu filho, por o considerar um entrave à sua felicidade.
A figura destruidora de Jack é contraposta, em larga medida, por Wendy. Ela representa no enredo a figura doce e maternal, que embora fragilizada e oprimida pelo temperamento violento do marido, tenta fomentar a união familiar e a temperança emocional de Jack. Um esforço que se revela infrutífero no decorrer do filme, há medida que o marido se afunda cada vez mais numa espiral de violência dirigida a si e a Danny. Os seus esforços acabam então por se centrar em salvar a vida do seu filho, mesmo que tenha para isso, de sacrificar a sua própria (ou a de Jack) para tal.
Torna-se então cada vez mais evidente o tema central do filme, que lida com o tópico da desintegração da instituição familiar (ou pelo menos da sua estrutura patriarcal convencional, simbolizada aqui pelos arquétipos clássicos do pai autoritário e da mãe submissa).


“The Shining” abunda em temas paralelos à sua problemática fulcral e em particularidades, que embora apreendidas de forma subconsciente, enriquecem em muito o enredo. Tal como um bom pintor encripta na composição do seu quadro um complexo sistema de símbolos, que ao serem descodificados, lhe conferem uma riqueza suplementar. Estes pormenores, embora de importância secundária, tornam-se preciosos, no sentido em que fornecem pistas importantes, não só sobre o ‘background’ psicológico das personagens em si, mas dos próprios acontecimentos que influenciam, de forma mais ou menos evidente, o meio em que elas se movem.
Talvez os temas secundários mais explícitos do filme, sejam o do racismo e da colonização.
Isto é constatável por algumas linhas de diálogo, que de outra forma não fariam sentido algum e estariam deslocadas no contexto da história. Por exemplo:

- A dada altura, estando Jack a encetar um diálogo no bar com o suposto bartender, podemos ouvi-lo a mencionar a frase “white man´s burden”.
Esta frase é o título de um poema de Rudyard Kipling sobre a colonização das Filipinas pelos Estados Unidos. Um ponto em tudo coincidente com a decoração aparentemente “étnica” do Overlook Hotel e com o isolamento experienciado pelos personagens. Simboliza, talvez, a ameaça sentida pelos primeiros peregrinos ao chegar à América e ao serem confrontados com uma realidade potencialmente inóspita.
Também não será rebuscado estabelecer-se um paralelo entre a família Torrance e as crianças perdidas de “O Senhor das Moscas”, de William Golding. Em ambos os casos, temos um grupo de pessoas, que vendo-se numa posição em que têm que assumir a responsabilidade pelo seu destino, em circunstâncias claustrofóbicas e deslocadas do seu meio ambiente normal, acabam por ceder ao caos, e aos seus instintos mais primários e animalescos. Instintos esses, que em ambos os casos são convenientemente representados, por intermédio de uma figura extra-corpórea (se bem que a “besta” na obra de William Golding seja uma entidade mais abstracta e subtil do que a ameaça sobrenatural de The Shining).

- Delbert Grady, o antigo zelador do hotel, refere-se a dada altura ao cozinheiro Dick Halloran como sendo “a nigger” - um preto; chegando mesmo a dar ênfase a esse adjectivo de natureza pejorativa. Tendo em conta que o primeiro representa na história uma espécie de figura paternal e de “mentor” de Danny (um papel por norma atribuído ao pai), não será de estranhar que Jack veja em Dick uma ameaça a ser eliminada. Mas o facto de Dick Halloran ser um negro (logo um representante de todo um conjunto de preceitos culturais e de consciência mágica, alheias ao homem branco), e para mais, protector de Danny, deixa transparecer no enredo outro elemento adicional: O da tentativa da contaminação da cultura ocidental, tradicionalmente branca e secular, por outras mais antigas e ligadas a um conhecimento mais oculto e de cariz iniciático.

O filme possui, ainda, duas pistas de grande relevância para se decifrar certas particularidades encriptadas no enredo.

À primeira, correspondem os diversos labirintos que se encontram no hotel.
O labirinto enquanto símbolo, é referente à descoberta de verdades ocultas e ao crescimento espiritual de um indivíduo, sendo transversal a inúmeras civilizações e culturas, desde a Romana até à dos nativos americanos.
Pode, de igual modo, simbolizar a psique humana e dar uma imagem da progressiva confusão mental em que mergulham os protagonistas, remetendo assim o espectador para o tema central do filme.
Pode ainda, aludir ao próprio hotel, onde várias tragédias ocorreram e em que todo o mal resultante desses acontecimentos passados, se encontra condensado no seu núcleo, oculto por uma intrincada rede de corredores. Seja como for, o que é certo é que o Overlook se encontra repleto de labirintos desde os padrões do chão e das paredes, passando pelos vários corredores onde Danny encontra as gémeas Grady; e pelo próprio jardim, onde na cena final ele tenta escapar ao seu pai, que tresloucado, o persegue com intenções de o matar.
Nesta cena, o climax do filme, Jack desempenha ao mesmo tempo o papel de Dédalo, o criador do labirinto (dado que é ele que cria a situação caótica em que se encontra, juntamente com a família) e o de Minotauro, no encalço da sua vítima.
Esta figura do Minotauro é, também, coincidente com a qualidade zoomórfica de muitos dos monstros que se encontram no hotel. Desde as máscaras animalescas dos fantasmas que Wendy encontra a dada altura num dos quartos, até à famosa cena do jardim (não presente no filme), em que os arbustos cortados de forma a parecerem animais, ganham, de repente, vida própria.

Outro elemento importante são os espelhos. Eles representam a verdade das coisas para lá das aparências (como no caso em que Jack se dá conta da natureza cadavérica do fantasma de uma mulher lindíssima, que o seduz no quarto 237), e advertem os personagens para os perigos inerentes ao hotel. Primeiro é Danny que tem a visão do sangue a jorrar do elevador, um prenúncio da ameaça sobrenatural do Overlook; e outro caso é a da famosa legenda REDRUM, que Wendy lê, horrorizada, no reflexo do espelho como MURDER.

“The Shining” é dado, como pretendi demonstrar, a muito mais leituras do que aquelas que poderíamos, a princípio, subentender no enredo. Descortinar todas as suas camadas interpretativas e ambiguidades é certamente uma tarefa morosa e díficil. Contudo, os objectivos de King e de Kubrick em relação a esta obra são muitas vezes diferentes, quando não, até, diametralmente opostos e conflituosos entre si.
Tal facto deve-se, em grande parte, às diferenças de personalidade dos dois autores: King explora um universo próximo da sua própria realidade e dos seus traumas. O enredo do livro parece ter em si um intuito catártico e recorrente em grande parte da sua obra literária; onde temas como o crescimento em meios rurais pobres e remotos, famílias problemáticas e questões ligadas com o alcoolismo, são transversais a grande parte dos seus romances, A figura de Danny terá sido, aliás, influenciada pelo seu próprio crescimento sem a presença de uma figura paternal que lhe conferisse estabilidade emocional e segurança. Kubrick, por outro lado, tinha uma visão muito mais cínica da natureza humana e do processo criativo. Tendo mesmo sido apelidado, a dada altura pelo próprio King, como alguém que “pensa demais e sente de menos”. Como tal, não será de estranhar que o filme seja uma incursão mais profunda e problematizada pelas pulsões e desejos mais primários da psique humana. Na minha opinião, esta é uma das raríssimas adaptações cinematográficas que suplantam - em muito - a obra literária.