A história gira à volta de Jack Torrance, um escritor visivelmente “borderline", que no decorrer de um bloqueio criativo, decide aceitar um alienante trabalho como vigilante de um remoto hotel, na esperança de poder concluir o seu projecto literário; e da sua família: Danny, seu filho, um rapaz com estranhos poderes de clarividência, e Wendy, a sua submissa e fragilizada esposa, que funciona como elemento aglutinador de uma unidade familiar visivelmente precária. O “gancho” do filme, e primeiro sinal denunciador do isolamento e degradação mental - as principais temáticas exploradas na obra - está patente logo nos primeiros minutos, quando o dono do hotel menciona a Jack um incidente ocorrido anos antes, em que um indivíduo que desempenhava as mesmas funções deste último, assassinou e mutilou a sua mulher e filhas, suicidando-se de seguida.
Está assim lançada a premissa do filme, cujas principais linhas de força têm como signo o elemento do hotel, aparentemente amaldiçoado, que mais do que uma localidade onde decorre a acção, é um elemento vivo e participante activo na progressão dramática do enredo (são exemplos disso a visão de Danny, em que uma torrente de sangue jorra do elevador, ou a advertência do cozinheiro Dick Halloran, que deixa implicito no seu diálogo com o primeiro, uma advertência para que este não entre, em circunstância alguma, no quarto 237).
Poder-se-á dizer, deste modo, que a ameaça sobrenatural representada pelo hotel, é um sinal claro do perigo que constitui a reclusão naquele espaço labiríntico, à harmonia da vida familiar, e ao despoletar do desejo latentes de Jack.
Embora todos os personagens tenham um papel de relevo no filme, o mesmo gira maioritariamente em torno de Jack e da sua progressiva deterioração mental. Convém então demorarmo-nos a retratar pormenorizadamente os seus dilemas emocionais e idiossincrasias. Sendo que é por intermédio do ascendente do hotel (que funciona como elemento destabilizador da sua sanidade) que intuimos as mudanças progressivas no seu arco da personagem.
Jack Torrance é representado no filme de uma forma muito menos lisonjeadora do que no livro de Stephen King. Enquanto na obra literária a sua personagem encarna o papel do herói trágico; vergado pelas vicissitudes de uma vida ligada ao alcoolismo e tentando rumar contra a maré, de modo a manter a integridade da sua vida familiar (uma temática que é, aliás, muito querida a King), o seu alter-ego cinemático é alguém muito mais vicioso e propenso à actos de violência.
De facto o protagonista de Shining, grandiosamente interpretado por Jack Nicholson, é alguém visivelmente perturbado e no limite de uma quebra psicótica com a realidade.
Seria possível dizer, inclusivamente, que Jack Torrance funciona no enredo como uma espécie de antagonista iconoclasta. Decidido a sacrificar os símbolos da pureza e da harmonia familiar, representados pela mulher, Wendy, mas muito particularmente por Danny, em prol de fins egoístas e próximos das pulsões mais animalescas da natureza humana. Jack, tal como o Deus Grego Cronos, que devora os própria prole, põe em prática o seu desejo latente de assassinar o seu filho, por o considerar um entrave à sua felicidade.
A figura destruidora de Jack é contraposta, em larga medida, por Wendy. Ela representa no enredo a figura doce e maternal, que embora fragilizada e oprimida pelo temperamento violento do marido, tenta fomentar a união familiar e a temperança emocional de Jack. Um esforço que se revela infrutífero no decorrer do filme, há medida que o marido se afunda cada vez mais numa espiral de violência dirigida a si e a Danny. Os seus esforços acabam então por se centrar em salvar a vida do seu filho, mesmo que tenha para isso, de sacrificar a sua própria (ou a de Jack) para tal.
Torna-se então cada vez mais evidente o tema central do filme, que lida com o tópico da desintegração da instituição familiar (ou pelo menos da sua estrutura patriarcal convencional, simbolizada aqui pelos arquétipos clássicos do pai autoritário e da mãe submissa).
“The Shining” abunda em temas paralelos à sua problemática fulcral e em particularidades, que embora apreendidas de forma subconsciente, enriquecem em muito o enredo. Tal como um bom pintor encripta na composição do seu quadro um complexo sistema de símbolos, que ao serem descodificados, lhe conferem uma riqueza suplementar. Estes pormenores, embora de importância secundária, tornam-se preciosos, no sentido em que fornecem pistas importantes, não só sobre o ‘background’ psicológico das personagens em si, mas dos próprios acontecimentos que influenciam, de forma mais ou menos evidente, o meio em que elas se movem.
Talvez os temas secundários mais explícitos do filme, sejam o do racismo e da colonização.
Isto é constatável por algumas linhas de diálogo, que de outra forma não fariam sentido algum e estariam deslocadas no contexto da história. Por exemplo:
- A dada altura, estando Jack a encetar um diálogo no bar com o suposto bartender, podemos ouvi-lo a mencionar a frase “white man´s burden”.
Esta frase é o título de um poema de Rudyard Kipling sobre a colonização das Filipinas pelos Estados Unidos. Um ponto em tudo coincidente com a decoração aparentemente “étnica” do Overlook Hotel e com o isolamento experienciado pelos personagens. Simboliza, talvez, a ameaça sentida pelos primeiros peregrinos ao chegar à América e ao serem confrontados com uma realidade potencialmente inóspita.
Também não será rebuscado estabelecer-se um paralelo entre a família Torrance e as crianças perdidas de “O Senhor das Moscas”, de William Golding. Em ambos os casos, temos um grupo de pessoas, que vendo-se numa posição em que têm que assumir a responsabilidade pelo seu destino, em circunstâncias claustrofóbicas e deslocadas do seu meio ambiente normal, acabam por ceder ao caos, e aos seus instintos mais primários e animalescos. Instintos esses, que em ambos os casos são convenientemente representados, por intermédio de uma figura extra-corpórea (se bem que a “besta” na obra de William Golding seja uma entidade mais abstracta e subtil do que a ameaça sobrenatural de The Shining).
- Delbert Grady, o antigo zelador do hotel, refere-se a dada altura ao cozinheiro Dick Halloran como sendo “a nigger” - um preto; chegando mesmo a dar ênfase a esse adjectivo de natureza pejorativa. Tendo em conta que o primeiro representa na história uma espécie de figura paternal e de “mentor” de Danny (um papel por norma atribuído ao pai), não será de estranhar que Jack veja em Dick uma ameaça a ser eliminada. Mas o facto de Dick Halloran ser um negro (logo um representante de todo um conjunto de preceitos culturais e de consciência mágica, alheias ao homem branco), e para mais, protector de Danny, deixa transparecer no enredo outro elemento adicional: O da tentativa da contaminação da cultura ocidental, tradicionalmente branca e secular, por outras mais antigas e ligadas a um conhecimento mais oculto e de cariz iniciático.
O filme possui, ainda, duas pistas de grande relevância para se decifrar certas particularidades encriptadas no enredo.
À primeira, correspondem os diversos labirintos que se encontram no hotel.
O labirinto enquanto símbolo, é referente à descoberta de verdades ocultas e ao crescimento espiritual de um indivíduo, sendo transversal a inúmeras civilizações e culturas, desde a Romana até à dos nativos americanos.
Pode, de igual modo, simbolizar a psique humana e dar uma imagem da progressiva confusão mental em que mergulham os protagonistas, remetendo assim o espectador para o tema central do filme.
Pode ainda, aludir ao próprio hotel, onde várias tragédias ocorreram e em que todo o mal resultante desses acontecimentos passados, se encontra condensado no seu núcleo, oculto por uma intrincada rede de corredores. Seja como for, o que é certo é que o Overlook se encontra repleto de labirintos desde os padrões do chão e das paredes, passando pelos vários corredores onde Danny encontra as gémeas Grady; e pelo próprio jardim, onde na cena final ele tenta escapar ao seu pai, que tresloucado, o persegue com intenções de o matar.
Nesta cena, o climax do filme, Jack desempenha ao mesmo tempo o papel de Dédalo, o criador do labirinto (dado que é ele que cria a situação caótica em que se encontra, juntamente com a família) e o de Minotauro, no encalço da sua vítima.
Esta figura do Minotauro é, também, coincidente com a qualidade zoomórfica de muitos dos monstros que se encontram no hotel. Desde as máscaras animalescas dos fantasmas que Wendy encontra a dada altura num dos quartos, até à famosa cena do jardim (não presente no filme), em que os arbustos cortados de forma a parecerem animais, ganham, de repente, vida própria.
Outro elemento importante são os espelhos. Eles representam a verdade das coisas para lá das aparências (como no caso em que Jack se dá conta da natureza cadavérica do fantasma de uma mulher lindíssima, que o seduz no quarto 237), e advertem os personagens para os perigos inerentes ao hotel. Primeiro é Danny que tem a visão do sangue a jorrar do elevador, um prenúncio da ameaça sobrenatural do Overlook; e outro caso é a da famosa legenda REDRUM, que Wendy lê, horrorizada, no reflexo do espelho como MURDER.
“The Shining” é dado, como pretendi demonstrar, a muito mais leituras do que aquelas que poderíamos, a princípio, subentender no enredo. Descortinar todas as suas camadas interpretativas e ambiguidades é certamente uma tarefa morosa e díficil. Contudo, os objectivos de King e de Kubrick em relação a esta obra são muitas vezes diferentes, quando não, até, diametralmente opostos e conflituosos entre si.
Tal facto deve-se, em grande parte, às diferenças de personalidade dos dois autores: King explora um universo próximo da sua própria realidade e dos seus traumas. O enredo do livro parece ter em si um intuito catártico e recorrente em grande parte da sua obra literária; onde temas como o crescimento em meios rurais pobres e remotos, famílias problemáticas e questões ligadas com o alcoolismo, são transversais a grande parte dos seus romances, A figura de Danny terá sido, aliás, influenciada pelo seu próprio crescimento sem a presença de uma figura paternal que lhe conferisse estabilidade emocional e segurança. Kubrick, por outro lado, tinha uma visão muito mais cínica da natureza humana e do processo criativo. Tendo mesmo sido apelidado, a dada altura pelo próprio King, como alguém que “pensa demais e sente de menos”. Como tal, não será de estranhar que o filme seja uma incursão mais profunda e problematizada pelas pulsões e desejos mais primários da psique humana. Na minha opinião, esta é uma das raríssimas adaptações cinematográficas que suplantam - em muito - a obra literária.
1 comentário:
Exaustivo e muito bom, o teu texto.
Recorrendo a toda essa simbologia apercebe-se ainda mais a dimensão do filme de Kubrick e justifica-se o seu perfeccionismo ao superar o livro que deu origem ao fabuloso The Shining.
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